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Igrejas impactam prejudicialmente vidas LGBT+ na busca pela ‘cura gay’

Após décadas de luta pelos direitos LGBTQIA+, igrejas continuam promovendo a ideia da 'cura gay', deixando marcas profundas na vida dessas pessoas

Comunidade LGBTQIA+ apresenta maior tentativa de suicídio - Imagem : Pexels

Foi só em 17 de maio de 1990, há 33 anos,que a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade daClassificação EstatísticaInternacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde ( CID ). E só em 2019, que a transgeneridade também deixou de ser considerada uma doença. Contudo, ainda há instituições que insistem um reverter a sexualidade e identidade gênero de uma pessoa alegando falha, pecado ou erro.

As instituições religiosas são as maiores atuantes na busca de uma “cura gay” . No Brasil, há diversos casos que ilustram a prática. O caso recente da ex-influenciadora bolsonarista Karol Eller que foi encontrada morta é o evento mais recente, e voltou a reacender o debate prejudicial da “cura gay” em pessoas LGBTQIA+. Karol era uma mulher lésbica, mas na ocasião, ela havia afirmado ter “renunciado à prática homossexual” e os “vícios e desejos da carne”.

Quando eu era mais nova, até uns 16 anos, eu sentia muito ódio de mim mesma, eu frequentava a igreja nessa época e sempre ficava com a ideia de que meus sentimentos, desejos, não era o que Deus queria, foi piorando nessa época porque a minha mãe era muito homofóbica, então tinha um peso gigante nas minhas costas porque na minha cabeça eu estava desapontando minha mãe e Deus”, divide a tatuadora Leticia Sipriano, que se identifica como uma mulher bissexual.

Assim como Letícia, o estudante de jornalismo Jonathan Monteiro também passou pela mesma situação. Embora Leticia tenha parado de frequentar a igreja , Jonathan ainda continua indo periodicamente.

Essa pressão [de curar a própria sexualidade] acontece a todas as pessoas LGBTQIA+ que passam pelo ambiente religioso. Desde criança você ouve ‘o que é certo e o que é errado’. Então, desde pequeno eu sentia essa pressão. Eu cresci na igreja Adventista, e a bíblia tem alguns versículos que a igreja gosta de usar para instrumentalizar e justificar o ódio”, afirma.

A cura gay no ambiente religioso

Para Jonathan, há duas formas que a igreja atua para cercear a sexualidade. A primeira é inconsciente, que se manifesta por meio das músicas tocadas, as pregações que falam sobre a família tradicional, o ambiente em si, etc. Já as formas conscientes é quando um pastor passa a direcionar conselhos para a pessoa diretamente e manda até materiais para “se curar”.

Teve um pastor que fez oração, de botar a mão nas minhas costas, e falar para Deus me ajudar na minha fraqueza. Aquilo vai te causando um conflito absurdo, gera dor, angústia. Já passei as madrugadas fazendo jejum e oração, e aquilo não vai mudando, você vai entrando na deles e eles vão oferecendo essa mudança”, compartilha o estudante.

Leticia teve uma experiência em um retiro evangélico em que vários pastores estavam presentes, e um deles estava abordando o tema da "cura gay". A razão para ela ter ido, foi porque o irmão a convidou, mesmo que inicialmente tenha ido sem muita expectativa.

Esse pastor era horrível o jeito que ele falava, ele se diz ex-gay, diz que ‘virou’ gay na adolescência”, conta Leticia. Ele argumentou que todos os homossexuais eram assim porque, supostamente, haviam sofrido algum tipo de trauma ou abuso. Além disso, sua esposa, que também era pastora, participava das sessões, gritando e pedindo para que o "espírito do homossexualismo" fosse expulso do corpo das pessoas.

Essa experiência fez Leticia questionar sua própria orientação sexual e levou-a a sentir-se extremamente mal consigo mesma. Em um momento, chegou a considerar tirar sua própria vida, uma vez que não conseguia controlar seus sentimentos em relação ao mesmo sexo.

Isso tudo é muito violento, e acaba virando uma tortura psicológica. Eles criam eventos para falar dessa questão de sexualidade e jogar exatamente o que eles acham. Lembro que participei de um evento em que eles tentavam culpar os pais por uma pessoa ser gay. Eles falavam ‘se você é gay, é devido à ausência do pai, se é lésbica, é porque tinha uma mãe muito incisiva’. Eles colocam aquilo como uma verdade”, completa Jonathan.

Na infância, Jonathan não sabia que era gay, mas sabia que gostava de meninos. “Desde criança eu ouvia que homem não podia se deitar com homem”. Só na adolescência que ele passa a se identificar como gay e enfrenta conflitos com ele e a religião.

A religião na perseguição da sexualidade “Na prática, eles tentam a conversão sexual, mas não usam o termo ‘cura gay’. A religião tenta fingir que não existem pessoas LGBTQIA+ quando entra nesse discurso, ela só entende que a pessoa é LGBTQIA+ se ela tiver praticando, se ela não for ‘praticante’, que é o termo que eles adoram usar, ela não é uma pessoa LGBT. Só que esse mesmo termo de ‘praticante’, não é aplicado para uma pessoa hétero.A pessoa vive sem identidade, ela existe ali, mas sua sexualidade não é considerada. E se ela for praticante, essa pessoa vai ser expulsa.

Outro caso que Jonathan enfatiza é quando o ambiente religioso passa a influenciar também o nicho familiar, e os dois acabam interferindo na vida dessa pessoa LGBTQIA+.

Para o psicólogo Daniel Amâncio, entre os impactos negativos estão: “um sentimento constante de vigilância, preocupação, culpa, relacionamentos prejudicados [afetivo, romântico, familiar, profissional, interpessoal], visão negativa sobre si mesmo, evitação social etc.” Ele ainda completa dizendo

que a energia psicológica que se gasta “ocultando e aniquilando a própria identidade e espontaneidade para sofrer menos violência é imensa e muito desgastante.

É muito difícil se tornar um(a) jovem que tenha estima por si mesmo, confiança, quando todo o contexto te condena, te desumaniza, te faz acreditar que seu afeto tem menos valor, que tem algo de muito errado com você”, defende Daniel.

O Instituto Matizes e a All Out Brasil divulgaram o relatório "Entre Curas e Terapias: esforços de correção da orientação sexual e identidade de gênero de pessoas LGBTI+ no Brasil", que identificou 26 formatos de "curas" e "terapias" de reversão sexual e de gênero, as quais são praticadas ou iniciadas por lideranças religiosas, pediatras, psicólogos, coaches, filósofos clínicos, professores, diretores de escola, familiares e amigos.

A pesquisa também destacou que a vulnerabilidade de crianças e adolescentes é aumentada por dois motivos principais: ausência de consentimento, pois não têm a capacidade legal de consentir com "tratamentos" ou "procedimentos" que possam representar risco ou danos à saúde física e mental; e o uso de laços afetivos, que são esforços induzidos e conduzidos por pessoas que representam autoridade, confiança e afeto, como familiares, lideranças religiosas, profissionais de educação, psicologia e medicina.

Letra mais perseguida

Para Jonathan, os pastores condenam mais os homens gays porque a bíblia tem mais versículos que falam sobre o sexo entre homens, e por isso acabam usando os textos para condenar se baseando no que tá escrito. “As mulheres lésbicas também sofrem muito, porque há a junção do machismo e patriarcado para atacar elas. E muitas das vezes, as pessoas bissexuais acabam renunciando porque também não querem se identificar com essa sexualidade e acabam ficando com o sexo oposto.

Leticia também observa que a perseguição aos bissexuais é menos intensa em comparação com lésbicas e gays. “Muitas pessoas minimizam a bissexualidade, considerando-a confusa, especialmente se a pessoa está em um relacionamento com alguém do sexo oposto”. No entanto, ela reconhece que a perseguição ainda existe, embora em menor grau em comparação com outras orientações sexuais.

Consequências

A dificuldade de se relacionar pode ter uma ligação direta com a homofobia internalizada ou com os possíveis julgamentos e tentativas de controle social que podem aparecer, destaca Daniel. “Famílias muitas vezes impactam essa dificuldade de se relacionar quando não aceitam ou aceitam parcialmente. Julgamentos sociais e religiosos também contribuem.

Leticia frequentou a igreja dos 12 aos 15 anos, mas não frequenta mais. Sua última experiência na igreja foi no retiro, e ela não consegue mais se identificar com a igreja, por considerar ser um ambiente de alienação e fanatismo. Ela não acredita que a sexualidade de uma pessoa seja uma doença ou que necessite do "perdão" de Deus. Ao sair da igreja, ela se sentiu muito mais leve: “Você se livra de uma culpa que não é sua.

Passar por um trauma como esse durante toda a vida e depois passar a se aceitar pode ainda ter resquícios, afirma Daniel. “Eu não conheci ninguém que tenha se esvaziado completamente destes atravessamentos. Mas ainda assim, temos muitos recursos de enfrentamento, de ressignificação das identidades LGBTQIA+ de maneira potente e política, isso é importante ressaltar", conta.

A homofobia internalizada é um longo caminho para ir se livrando dos estilhaços deixados por anos de violências físicas e simbólicas. Podemos reproduzir homofobia conosco ou com outras pessoas, além de outras opressões que se interseccionam com classe, raça, gênero, entre outras”, completa Daniel.

Jonathan não frequenta mais a igreja como antes, mas ainda segue a religião. “Consigo desenvolver minha fé sem precisar estar indo para a igreja. No ambiente evangélico, sempre vai ter alguém que vai te tratar como se você fosse uma pessoa condenada, como se fosse um membro afastado, como se você não fosse digno de estar no espaço religioso.

Para o jovem, ele conseguiu se empoderar no ambiente religiosos após frequentar espaços de militância e ir à terapia, e até vai de saia para a igreja às vezes.

A tatuadora acredita que o ambiente evangélico, de modo geral, é hostil, mas que a abordagem deles em relação à homossexualidade é particularmente prejudicial. “Eles te humilham, te condenam, te desprezam, preferem ver você morto, tudo em nome de um Deus que eles dizem que pregam amor.


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